
Campo de Tiro
December 15, 2022
Manuel dos Reis
December 15, 2022Com uma história de vida cujo início nem o próprio conheceu bem, ignorando inclusivamente quem o trouxe a este mundo ou quando lhe deram um nome, eis o drama de uma infância, que à distância de um século se torna difícil de reconstruir.
Manuel da Silva, “talvez” nascido na freguesia de Albergaria dos Doze, no concelho de Pombal, “supostamente” ao entrar na última década do século XIX, foi entregue na “Roda” por alguém que escondendo ligação
inconfessável teve, no entanto, a consciência bastante para colocar a criança ao alcance de uma instituição que lhe viesse a proporcionar algum futuro.
Também não é conhecida a entidade que o recolheu, nem para onde terá sido deslocado quando já mais crescido entrou no “mercado de trabalho”, ficando desde logo à mercê de quem o pretendesse levar. Mais uma vítima inocente de entre tantas que conheceram a chaga do abandono infantil, entregues a um acaso que nem a todos bafejou, sobretudo nos anos mais difíceis de suportar os primeiros das suas vidas.
Um dia, foi requisitado à instituição que o albergara e levado para os arrozais de Vila-Franca-de-Xira, onde endureceu numa vida de trabalho e de onde fugiu, já rapaz consciente para tomar decisões. Terá sido entre 1900 e 1910 que Manuel da Silva apareceu na Parede, trabalhando nas obras de construção civil, na época de crescimento urbanístico da terra, que pela mão do Almirante José Nunes da Mata iniciara o seu período de expansão criterioso.
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Nota:
As Rodas eram cilindros giratórios com uma grande cavidade lateral que se colocavam junto às portarias dos conventos. Inicialmente serviam de meio de comunicação entre o interior e o exterior do convento. Na abertura lateral eram colocados objectos pelas pessoas que se encontravam no exterior do convento, após o que tocavam uma sineta e a “irmã rodeira” fazia rodar a roda e recolhia o objecto nele depositado.
Normalmente ofertas.
Mais tarde, começaram a colocar nelas crianças enjeitadas ou fruto de ligações inconvenientes. Estes filhos de ninguém eram frequentemente filhos de raparigas pobres, resultado de ligações proibidas ou mesmo crianças encontradas abandonadas. Mais crescidas, eram entregues a uma instituição de misericórdia, preparando-as para a vida adulta, nem sempre com os melhores métodos e sem que fossem alcançados os objectivos pretendidos.
De tanto ser usada, a “Roda” passou a ser legitimada e mesmo oficializada no final do século XVIII, com designação oficial de “Roda dos Expostos” ou dos “Enjeitados”.
O Intendente do Reino, Pina Manique, reconheceu oficialmente a existência da Roda através da circular de 24 de Maio de 1783, na tentativa de pôr fim aos infanticídios e de acabar com o comércio de crianças portuguesas junto às fronteiras, onde os espanhóis as vinham comprar. Passou a ter existência em quase todas as terras deixando, no entanto, de ter a mesma relevância com o advento do Liberalismo, considerada até uma aberração legal que urgia dar por finda.
Só que um decreto não elimina a realidade e o abandono infantil não terminou, como ainda na actualidade se verifica. A designação – “foi deixado na Roda” – permaneceu como indicativo de que se estava na presença de criança abandonada e sobrevivendo em ambiente estranho ao de sua família natural.
(adaptação de um texto em circulação na internet, de autor não identificado)

No prolongamento desta rua, para Sul, encontra-se a rua Capitão Leitão, na esquina da qual se situa a Pastelaria Ribeiro. Estas duas ruas são interceptadas pela avenida da República.
Numa descrição feliz, escreveu o poeta Victor Cintra num livro intitulado “À Distância” o poema dedicado a um destes abandonados:
Deixado ao abandono pela Mãe
Por ser de nascimento indesejado,
Lutou contra o destino e foi alguém,
Ilustre, com valor, bem educado.
Sabendo que a revolta não se esgota,
Enquanto se não pode perdoar,
Pautou a vida toda numa nota:
“Que Mãe é sempre, e só, quem sabe amar!”
Amou como ninguém quem o criou,
Dizendo, sempre em tom de brincadeira:
-“Nasci, mas fui criado em chocadeira!”
Passados muitos anos, já Avô,
Lamenta essa mulher – com certa dor –
Que, tendo um filho, não lhe deu amor.
Poderia aplicar-se este poema a Manuel da Silva, se na sua história de vida houvesse uma família que o tivesse acolhido quando a Roda o aceitou. Não parece ter sido esse o seu percurso, porque a sua fuga após um período de trabalho nos arrozais indicia que ficou simplesmente entregue à sua sorte.
Na Parede, foi-lhe dado alojamento e alimentação numa “Casa de Pasto”, na rua Luís de
Camões, onde D. Ermelinda Rosa e seu marido, o senhor Plácido, exploravam o negócio.

Quando em data pouco precisa, mas anterior a 1920, o senhor Plácido “deixou de ser visto”, expressão feliz e carinhosa que o poeta Fernando Pessoa utilizou para referir a morte dos amigos, o homem que até ali se revelara um trabalhador honesto, certamente por essas qualidades também, mereceu de D. Ermelinda Rosa uma atenção especial, acabando
ambos por acertarem um casamento duradouro, até ao ano de 1950, data em que Manuel da Silva faleceu.
No dia 23 de Agosto de 1921, nasceu a única filha deste casamento, Silvina da Conceição
Rosa da Silva.
A partir desta altura Manuel da Silva desenvolve o negócio de aluguer de transportes, primeiro com carroças e mais tarde também com camionetas.
Conta-se que ia carregar areia à zona do Guincho, saindo a carroça, puxada por mulas, pela madrugada e regressando no final do dia.
Ficaram ainda testemunhos do ambiente de amizade que Manuel da Silva proporcionava,
transportando gente para os piqueniques, fora de portas, uma das muitas tradições da terra.

Manuel da Silva (X) transportando gente da Parede
Na fotografia de cima reconhece-se a filha Silvina (1)

Manuel da Silva e um grupo de excursionistas simulando um acidente

Sobretudo na primeira metade do século passado, era vulgar verem-se vendedores com as
suas mercadorias transportadas em carroças, percorrendo as ruas e parando à porta dos
fregueses abastecendo-os dos mais variados produtos.
Muitos paredenses têm ainda presente a visão da carroça do “Petrolino” puxada por uma
mula e conduzida por Manuel dos Santos (o Manel maneta) levando petróleo; a carroça do
Joaquim Tavares Lopes com o burro “Faísca” transportando mercearias e carvão; a carroça
das hortaliças de Augusto César, a caminho da Praça onde comerciava desde longa data,
e muitas outras figuras típicas da terra que faziam o seu negócio com a ajuda de animais,
com destaque para o leiteiro levando as vacas pelas ruas, o padeiro com o pão nas cestas
ou as lavadeiras com as trouxas de roupa depois de lavada nos lavadouros improvisados,
que mais não eram, por vezes, senão simples poças formadas pela água da chuva.

Nesta fotografia figuram a pequena Adelaide (Lalita) e sua mãe Rosa Azevedo Rodrigues


Lavadeiras na Corriola, uma zona localizada entre a Parede e Carcavelos, nos anos 40

Sobre o animal, os irmãos Manuel e Isabel Barra Pinto dos Santos

descendo a rua Heliodoro Salgado nos primeiros anos do século XX. Em 1938 esta rua tomou a designação de rua Latino Coelho
O vendedor ambulante de perús foi uma personagem que ao longo de décadas se tornou presença habitual no cenário de muitas localidades, com especial visibilidade quando se aproximava o mês de Natal. Dirigindo as aves com a ajuda de duas compridas canas, assobiando de forma característica a que os animais correspondiam com o seu “gargarejo”, chamava deste modo a atenção dos compradores que ao meio da rua iam regatear o preço.
Andavam quilómetros através de caminhos e terrenos baldios, entrando nas povoações para negociar, sem preocupação quanto ao alimento das aves porque estas o encontravam durante o seu caminhar.
A Parede foi também visita destes vendedores e no terreno que Manuel da Silva ocupava na rua Luís
de Camões, os perús recolhiam-se ali enquanto o “pastor” era alimentado na casa de pasto e nela pernoitava.


Pedro Ferreira de Andrade, Lopes, Alberto Baguinho, Eugénio Folgado, António Alves e Rogério (filho)

Um dos motoristas com actividade na Praça da Parede foi Alberto Alves, cunhado de Faustino Sapata, que emigrou para o Brasil em data não confirmada e que frequentemente, enquanto aguardava pelos clientes, adormecia no seu lugar.
Era proprietário de um táxi e, segundo informações recolhidas, teria sido o primeiro detentor de alvará para
o exercício da actividade na praça desta terra.
A Parede foi uma “escola de patifarias” e ao longo do tempo ficaram histórias da sua rapaziada recordadas
ainda na actualidade por muitos paredenses.
De entre estas, conta-se que certa noite, em hora de chegada do combóio à estação e aproveitando o maior
movimento de passageiros junto aos táxis que ali aguardavam clientes, um grupo de “malandros da terra”
decide actuar “contra” Alberto Alves.
Enquanto um abria a porta traseira e gritava para o motorista: – Siga para S. Domingos de Rana, faz favor!,
fechando a porta de imediato, outros davam balanço ao automóvel como se efectivamente alguém tivesse entrado
nele.
O motorista, ensonado, nem se preocupou com mais nada e cumpriu de imediato a ordem do cliente, arrancando
para o destino.
No trajecto, deu conta que o táxi arrancara vazio e que lhe calhara a ele, dessa vez ser a vitima escolhida daquele grupo.

meios de transporte existentes na terra há décadas atrás, sendo Alberto Alves, também ele, pioneiro nesta actividade.
dos livros ” Parede a terra e a sua gente”
autor – José Pires de Lima


