
Os “Charutos” e as “Chatas”
December 25, 2022
Avenida Marginal reaberta ao trânsito oito horas depois de ter sido encerrada
August 5, 2023António, Carlos e Alcino
Uma família onde dois irmãos marcaram com notável brilho e excepcional
qualidade a sua dedicação ao Fado, legando uma vasta obra discográfica e dando um valioso contributo para a nomeação desta canção como Património Imaterial da Humanidade, galardão conferido pela Unesco no ano de 2011.

Filhos de António Frazão, um artista marceneiro, bombeiro voluntário da Corporação da Parede, poeta e também castiço intérprete amador da canção nacional, Carlos e Alcino foram figuras cimeiras na divulgação do Fado.
Carlos foi uma das vozes mais genuínas e Alcino um exímio tocador de guitarra portuguesa, o instrumento que por si só dá corpo e melodia ao trio formado por esta, pelo cantor e pela viola.
Quatro elementos de uma mesma família, porque também o filho maior, o Zé Manel, se apresentou por diversas vezes nas plateias nocturnas do denominado “fado vadio”, embora no mais completo espírito amador.
Não podemos deixar no esquecimento a memória da família Frazão. António, Carlos e Alcino, como nos diz o poeta, “deixaram de ser vistos” e deles, com o testemunho vivo do que escreveram, do que cantaram e do que tocaram, fez-se uma pequena história a que o Nuno, filho do Carlos, com grande realismo e cativante sentimento deu o seguinte e valiosíssimo contributo:

“A Parede é quase a minha segunda casa. É praticamente a minha segunda terra. E talvez a primeira terra da minha família. Sendo que está no Concelho de Cascais e a vila de Cascais é a terra onde nasci, talvez ambas as realidades se pudessem confundir, mas não.
A Parede é uma freguesia (ainda), uma terra, uma localidade, com uma identidade muito própria e inconfundível.
Quando penso na Parede, penso, naturalmente, na família do meu pai, que tanto gostava da sua terra,
do seu local de nascimento, infância e juventude.
E penso muito em particular no meu avô, o Avô
Frazão. E penso muitas vezes e ainda no meu Avô Frazão. A primeira imagem que me vem à cabeça, quando penso nele tem como cenário a sua oficina de marcenaria, ali na Capitão Leitão, ao lado da estação de comboios.
Numa das paredes, em destaque, um cartaz que, com alguma graça, dizia algo como: “Só se emprestam ferramentas amanhã” (não tenho a certeza de que a frase fosse exactamente esta, mas o sentido era o mesmo).
Um indício do enorme sentido de humor que ele tinha e que todos lhe reconheciam. Noutra, os dois únicos posters existentes em todo o espaço: um de Salazar e outro de Amália.
Talvez o antigo Presidente do Conselho sentisse a parede algo nua, pela existência apenas de um dos seus “F”, o do Fado.
Mas naquela oficina, quando o meu avô estava presente, também havia algo religioso. Nada especificamente de Fátima, mas no Cristo de ouro que sempre vi pendurado no seu peito. Quanto ao Futebol, também este estava no seu peito, mas lá dentro, no seu coração, onde morava o seu (o nosso) Benfica (uma “doença” familiar).

Por falar em Fátima e no sentido de humor do Avô Frazão, recordo-me de uma história que costumo partilhar sempre que falo nele. Uma vez, uma senhora levou à oficina uma imagem de Nossa Senhora (não sei qual a invocação da Virgem), muito bonita e excelentemente executada, para ser restaurada.
O meu avô, em jeito de piada, mas também de elogio à peça, disse à cliente: “Esta imagem é belíssima.
Mais bonita que esta, nunca vi nenhuma, a não ser uma Nossa Senhora de Fátima do século XVII que
tenho lá em casa”.
A senhora, não se lembrando (é mais gentil dizê-lo assim) que uma Nossa Senhora de Fátima só poderia ser do século XX (as aparições deram-se em 1917), prontamente afirmou, com um ar muito convicto:
“Ah, pois, essas é que são lindas”!

Lembro-me do Avô Frazão no torno mecânico, transformando (enquanto torneava) pedaços rudes de madeira em peças de curvas belas e sinuosas, com uma ligeireza enganadora. Enganadora, porque parecia fácil.
Nas suas mãos, a madeira tinha a maleabilidade do barro. Mas não tinha… Uma vez arrisquei tentar fazer o mesmo e o formão, quando encostou na madeira, que rodava a um ritmo alucinante, saltou me da mão e voou para longe.
A partir daí, decidi que seria melhor espectador do que executante e ali ficava, minutos e por vezes horas, à conversa com o meu avô, enquanto ele trabalhava e os cigarros ardiam encostados ao metal do torno, fazendo um cilindro compacto de cinza.
A oficina não era apenas local de trabalho, ou de agradáveis conversas. Era também local de banquetes.
Algumas vezes, ao Domingo, ali reunia a família para refeições que demoravam horas e horas e horas.
Aliás, foi com o meu avô que aprendi a comer devagar, para saborear a comida, o vinho e a companhia.
Repastos, esses brilhantemente confeccionados pela sua última mulher, a Isabel, cujos dotes culinários
são irrepreensíveis. Mas não se pense que a Isabel era a única a saber cozinhar naquela casa… O Avô
Frazão também cozinhava e bem!

Muitas vezes eu saía dos Salesianos e apanhava o comboio, ou pegava na minha acelera e ia ter com ele para almoçar em sua casa.
Provavelmente uma das casas mais pequenas do mundo, razão de se fazerem os almoços na oficina, quando se reunia toda a família, mas grande em generosidade e gosto pela vida. A propósito disto, uma outra pequena estória… Frequentemente, eu levava amigos do colégio para almoçar lá em casa do meu avô, pois tinha e tenho o maior orgulho nele e sabia que qualquer pessoa que o conhecesse ficaria fã daquele homem.
Era especialmente engraçado quando sabia que algum desses amigos pertencia a uma família com uma situação financeira “confortável” há várias gerações e, enquanto nos atirávamos a um dos seus saborosos cozinhados, naquela ínfima sala, dizia: -«Eu levava-o lá fora para conhecer os espaços verdes da casa, mas mataram-me ontem um cisne com uma bola de golfe e estão a limpar…».
Mas trabalhar com mestria a madeira não era a sua única arte. William Morris, influenciado pelo romântico John Ruskin, lançou na segunda metade do século XIX o movimento conhecido por Arts & Crafts, que, entre outros princípios, defendia o fim da distinção entre artesão e artista. Fez escola, este movimento (alguns defendem ter sido percursor da Bauhaus) britânico, mas a expressão Artes e Ofícios já se utilizava em língua portuguesa desde o início do século, como se comprova com a fundação da Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios (hoje em dia Universidade Federal), no Rio de Janeiro, por D. João VI.
É aproximadamente esta, para mim, a melhor descrição do Avô Frazão, um homem de Artes e Ofícios.
Na realidade, o trabalho com a madeira era o seu ofício, o seu ganha-pão, mas também uma arte. Tinha várias outras, como a da cozinha e a do humor fácil, como já referido, ou ainda a de cantador de Fado, e igualmente a de poeta, cujos livros de edição de autor felizmente o imortalizaram.”

Com um foco dirigido para a figura de António Frazão, mestre marceneiro, poeta, castiço fadista da velha guarda, apurado cozinheiro e de inteligente e fino humor, não poderia ficar no esquecimento a sua fase da vida de bombeiro, integrando o Corpo Voluntário da Corporação da Parede.
Passadas largas décadas desde que envergou a farda de “soldado da paz”, António Frazão foi mais um paredense exercendo a sua profissão na terra e que entregou também o seu tempo na ajuda activa aos outros.

Datado de 1996 contém alguns poemas que já em 1992 faziam parte de um outro livro, do mesmo autor, com o título “A Causa a que me dei” e com o subtítulo “poemas para dar”

Datado de 1996 contém alguns poemas que já em 1992 faziam parte de um outro livro, do mesmo autor, com o título “A Causa a que me dei” e com o subtítulo “poemas para dar”

…Retomando o texto de Nuno Frazão:
Quem também ficou imortalizado em registo, infelizmente num único disco da sua arte, foi o meu tio Alcino. Filho homem mais novo do Avô Frazão e da Carmen, tinha cerca de dez anos de distância para os seus irmãos mais velhos. Carmen, foi como uma segunda mãe para o meu pai e para o meu tio Zé Manel.
Fruto de alguns problemas de visão, sobretudo num dos olhos, que o levaram a usar óculos graduadíssimos, apurou outros sentidos, como o da audição. Nascendo numa família amante de Fado, dedicou-se afincadamente a tocar Guitarra Portuguesa e desde muito novo demonstrou o seu talento e se revelou um predestinado.

Tocou praticamente para todos os grandes nomes do Fado (e não só) de então, tendo o seu ponto alto nas vezes que teve a honra de acompanhar Amália (como deve ter olhado emocionado o Avô Frazão para o poster da sua oficina).
Além do artista, era uma pessoa excepcional, por todos reconhecida a sua bondade e simpatia, ainda que tímida.
Mais do que um familiar, foi um amigo. Tratava-me, como também às minhas primas, num misto de filhos, sobrinhos e irmãos mais novos. Duas lembranças, em particular, são recorrentes, quanto ao Tio Alcino.
A vez em que pela primeira vez entrei num bar/salão de jogos, em Lisboa (algures perto da Praça da Alegria) e que experimentei jogar snooker, foi com ele.
Mas também uma das primeiras vezes que fui ao cinema. Fomos várias vezes juntos, mas nunca me esquecerei dessa primeira, em que assistimos ao clássico de animação da Disney «Os Aristogatos». Morreu cedo de mais, num acidente, na Marginal, junto à sua, à nossa Parede. Mas vive ainda, nos nossos corações, nas nossas recordações.

No verso da capa do disco único de Alcino pode lêr-se que «Alcino Frazão nasceu em 8 de Fevereiro de 1961, sofrendo trágico acidente de viação que o vitimou ao despontar do dia 7 de Novembro de 1988. Perdeu-se assim o mais importante guitarrista da nova geração, dos mais categorizados e promissores de sempre. O seu talento manifestou se
muito cedo.
Apaixonou-se pela guitarra ainda menino, quando o Pai o levava aos fados. Uma guitarra recebida como presente de aniversário foi o seu primeiro brinquedo. Profissional aos 15 anos, pouco depois gravou o seu primeiro disco como guitarrista de acompanhamento, com Jorge Fernando à viola. Em tão poucos anos e tão pouca idade, fez uma carreira invejável, tendo tocado para todos os mais importantes artistas portugueses, desde seu irmão Carlos Zel a Amália, ou a Paulo de Carvalho, de quem era guitarrista permanente.
Também teve sempre a seu lado os melhores violistas. Formou parceria com Francisco Peres “Paquito”, com quem gravou este seu primeiro disco como solista.»


Mário Pacheco tornou-se mais tarde um exímio tocador de guitarra portuguesa e também compositor, deixando a viola com que se iniciara na profissão.

De António Frazão para seu filho Alcino

Ainda o testemunho de Nuno Frazão:
.”..Mas o filho mais novo do meu avô não é um filho, mas sim uma filha, a Diana. Não lhe chamo Tia Diana, porque ela é mais nova que eu, por isso tenho-a mais como uma prima do que uma tia, naturalmente.
Não estou tantas vezes com a Diana, quanto gostaria e sei que ela também, mas o mais importante é que sabemos o carinho que temos uns pelos outros (e desde há pouco anos pelo seu filho, que também nunca esqueço, o meu primo Milton).
Não posso pensar na Parede sem que esteja associado, claro, o meu tio Zé Manel. Tal como o Avô Frazão e o Tio Alcino, o Tio Zé Manel é um amigo. Como acontecia entre ele e o meu pai. Tendo os dois apenas um ano de diferença, foram sempre melhores amigos e companheiros.
Ambos jogaram hóquei no Parede Futebol Clube, altura pela qual terão conhecido o grupo de amigos que ainda hoje se encontra e que, mesmo sem se ver há algum tempo, parece que esteve ontem reunido.

Há quem não saiba, mas ambos cantavam. É verdade, já tinha ouvido dizer que o meu tio Zé cantava, mas nunca tinha ouvido, até que numa homenagem ao meu pai, na SMUP, ele foi ao palco cantar (se não me engano foi o “É Tão Bom Ser Pequenino”) e não envergonhou, antes pelo contrário, os artistas profissionais que passaram nessa noite por aquele palco.
O tempo que mais estiveram separados foi talvez quando o meu tio esteve na Guerra do Ultramar, em Moçambique, a cumprir comissão na Força Aérea, durante 2 anos.

Mas há males que vêm por bem, e talvez esse contacto com outra realidade o tenha levado a trilhar diferente caminho, levando-o para uma vida profissional de sucesso, como quadro de empresas, e actualmente como empresário. Pelo menos uma vez por semana estamos juntos.
Vamos todos os Sábados jogar ténis de manhã e além do desporto em si, aproveitamos para colocar a conversa em dia.
Falamos de política (quase sempre em desacordo, mas sempre com respeito mútuo), do Benfica, de negócios, da vida…
Mas acima de tudo estamos juntos e isso é o mais importante. Além de tudo isto, o Tio Zé é o pai das minhas primas, que são também pessoas essenciais na minha vida. A Rita e a Raquel, as mais velhas, além de primas, foram sempre companheiras de brincadeiras, desde muito novos. Sendo eu filho único, foram sempre como irmãs.

A minha prima mais nova, a Luisinha, é também, por gentileza do meu tio, minha afilhada de baptismo, o que me honra e me alegra por igual medida. Naturalmente, também ela e a nossa história está ligada à Parede, pois foi na igreja paroquial que se realizou o seu baptismo.
O meu primo David, filho da Rita, não foi baptizado na igreja da Parede, mas quer ele já saiba, ou não (e vai saber), a Parede faz parte também
da sua história.
Falta falar do meu Pai. Não é fácil. Não porque me faltem as palavras, mas porque essas não se esgotam. Acima de tudo, no seguimento do que disse relativamente aos restantes familiares, de serem em primeiro lugar amigos, o meu Pai foi e continua a ser o meu melhor amigo!
Deu-me a melhor das heranças, uma educação que lhe agradeço (e naturalmente à minha Mãe) e o ser o homem que hoje sou, com todos os defeitos e algumas qualidades, mas cheio de orgulho em mim e na minha família.
Viveu na mesma casa onde tantas vezes visitei o meu Avô e cedo começou a cantar perto de casa, ainda na adolescência, nos anos 60, nas tabernas da Parede, na rua Capitão Leitão, em que se cantava Fado. Uma delas ainda conheci, embora fosse só taberna, sem fados, mas com um campo de Laranjinha nas traseiras, onde se jogava com bolas feitas pelo Avô Frazão.

térrea do número 3 da “Vila Particular”, na rua Capitão Leitão, na Parede
Estimulado pelos elogios, o Avô Frazão, já homem de fadistices, levou-o à melhor casa de fados de Cascais (mais precisamente no Estoril), que costumava frequentar, o Galito. Também ali cantou e encantou e passou a partir daí a frequentar todas as casas de fados do concelho e depois as de Lisboa.
Antes de completar 20 anos já tinha gravado discos, fora convidado para cantar nas mais consagradas casas, actuara na Emissora Nacional e até convites tivera para representar no Parque Mayer. Foi então que por motivos de registo profissional, começou a utilizar o nome de Carlos Zel. Mas para quem o conhecia, da Parede, continuava a ser, como ele se sentia, um Frazão…”

Numa resumida biografia pode lêr-se:
Carlos Zel nasceu na Parede no dia 29 de Setembro de 1950, iniciando a carreira profissional em 1967. Em público, apresentou-se um ano mais tarde nos estúdios da Emissora Nacional.
Para além da sua profissão de fadista, fez teatro de Revista e teatro Musical, integrando as peças “Aldeia da Roupa Suja” em 1978, “A Severa” em 1990 e “Ai Quem me Acode” em 1994.
Participou em vários programas de televisão, tendo feito parte do elenco da telenovela “Cinzas”, como actor. Foi o primeiro fadista masculino a ser contratado para uma temporada inteira de actuações no Casino Estoril.
Sócio fundador da “Academia da Guitarra e do Fado”, foi distinguido em 1993 com o “Prémio Prestígio” atribuído pela Casa da Imprensa.
Em 1997, esta mesma entidade concedeu-lhe o Prémio José Neves de Sousa.
Foi condecorado pela Cruz Vermelha Portuguesa com a “Medalha de Mérito” e também pela Câmara Municipal de Cascais com igual distinção.
Quase 35 anos de carreira levaram-no ao estrangeiro por diversas vezes; Espanha, França, Holanda, Escócia, Dinamarca, Noruega, Itália, Áustria, Brasil, Argentina, Chile, Venezuela, Canadá, Estados Unidos da América e Senegal foram alguns dos países que o escutaram.

…” Por essa altura conheceu um dos seus grandes amigos para a vida, que viria a ser meu padrinho de baptismo, José Pracana. Com ele e outros fadistas da sua geração, como João Braga, convivia, aprendia e evoluía. Como o afirmam algumas obras recentes sobre o Fado, as suas principais referências eram Amália, Maria Teresa de Noronha, Alfredo
Marceneiro, Manuel de Almeida e João Ferreira-Rosa, que era também um grande.
A sua carreira teve uma ascensão assinalável. Chegou, nos anos seguintes, a um lugar reconhecido entre os melhores intérpretes de Fado da sua geração (naturalmente, para mim, o melhor de sempre de todas as gerações), com uma carreira que chegou a ter uma importante parte internacional, em vários continentes, com destaque para os últimos
anos de carreira, no circuito da chamada world music…”

Iniciou a gravação discográfica em 1967, um trabalho em vinil de 45 rpm, com o título de “Rosa Camareira”.
Em 1968 gravou “Poemas de Eduardo Damas”, seguido de “Maria dos Olhos Verdes” em 1969, Minha Primeira Cantiga” em 1971, “O Seu Nome era Manuel” , numa homenagem ao toureiro Manuel dos Santos, em 1976 e “O Romeiro”, um vinil de 45 rpm onde apresentou dois temas de Armando Estrela, “A Nossa Hora” e “Romeiro”.
Neste disco foi acompanhado pelas guitarras de seu irmão Alcino Frazão e de José Fontes Rocha, pela viola de Pedro Leal e ainda pela viola baixo de Joel Pina.



Na faixa 5, Carlos Zel canta o fado “Nova Lisboa”, um poema de seu filho Nuno Frazão, com música de Guy Valle Flor

…“Esta parte da vida pública de meu Pai é fácil de ser consultada. Mais importante, para mim e para a família, mais do que o artista, era o ser humano. O homem que me ensinou (não demorou muito) a gostar do Benfica (e a sofrer por ele). O homem que me ensinou a gostar de política e a exercer a minha cidadania de forma activa (qualquer que fosse o posicionamento que eu, de forma informada, escolhesse).
O homem que me incutiu o gosto pela História e pelo seu estudo…

“…O homem que me pegou o gosto pelo teatro português e em português. O homem que partilhava comigo a paixão pelo cinema, quer fossem as maiores obras de arte, ou os mais espectaculares filmes de acção. O homem que me ensinou a rir e que comigo riu, com os filmes portugueses dos anos 40, com os programas do Herman, com os «Monty Python», com o «Allo Allo», com o «Black Adder», com o «All In The Family», com o «Family Ties», com o «Há Petróleo no Beato», com o «Lá em Casa Tudo Bem», com o «Gente Fina é Outra Coisa», com o «Duarte e Companhia».
O homem da Parede que me levava a comer conquilhas, bitoques e bolos de bolacha no Silva; o homem da Parede que me levava a comer iscas no Isaías; o homem da Parede que jogava às cartas na sede do CNG; o homem da Parede que me falava das noites de cinema ao ar livre, junto ao Parque Moraes; o homem da Parede que me levava a comer bom peixe n’O Solário, mas também no Toscano, ou no Dom Pepe; o homem da Parede que me levava a
petiscar fresquíssimos mariscos no Eduardo das Conquilhas; o homem da Parede que comprava o Bolo-Rei no Ribeiro, mas também tomava café no Limo Verde; o homem da Parede que insistia com a minha mãe que o peixe do mercado da Parede era o melhor e mais fresco; o homem da Parede para quem as melhores praias eram, precisamente, as da Parede, fosse a do Solário, fossem as Avencas.
Quando lá estávamos dizia-me sempre, enquanto inspirava:
“Estás a sentir? Isto é o cheiro a iodo, como não há em mais lugar nenhum. Só aqui, na Parede”
Carlos Zel foi o primeiro fadista a ser contratado pelo Casino Estoril para uma actuação durante uma época inteira. As então designadas “Quartas de Fado” no Wonder Bar, levaram àquela sala um sem número de intérpretes convidados, todos eles merecedores de destaque, em noites de tal forma marcantes que em 2010 uma editora, a Movieplay, trouxe a público um CD com uma selecção muito especial de actuações a duo, de fadistas que cantaram com Carlos Zel algumas famosas criações e também deste a solo.
Nuno Frazão, filho de Carlos Zel, foi o responsável pela escolha deste conjunto de interpretações e sobre o facto a sua palavra aqui transcrita, em parte, da contra capa do CD:
“Nunca seria fácil proceder a uma escolha de temas gravados pelo meu Pai, no Wonder Bar do Casino Estoril. Em primeiro lugar pela grande quantidade, depois, porque sendo eu suspeito, gostaria certamente de incluir nesta edição toda e qualquer gravação existente, e ainda pelo facto de terem passado nestas Quartas-Feiras um sem número de prestigiados convidados, todos eles merecedores de destaque…

E mais adiante:
… A escolha das músicas está ligada ao método que utilizei de forma a que se enquadrassem dentro do
número de faixas e do tempo apresentado pela editora, que passo a expor:
Comecei por seleccionar aquelas que têm duetos com o cuidado de escolher uma por convidado, assim
ficando:
Com Carlos Azevedo, a «Igreja de Santo Estêvão», por ser única e julgo não haver, até agora, qualquer
registo fonográfico do Pai a cantar este fado.
Com Filipe Mendes o «Fado Pechincha».
Com Filipe de Brito, o «Estranha Contradição».
Com Bernardo Sassetti, o «Fado da Defesa».
Com Fernando Maurício, «O Leilão».
Com João Ferreira-Rosa, «Os Saltimbancos».
… Quanto às do Pai a solo, todas as que me foram apresentadas estão muito boas, pelo que as sugerina sua totalidade, juntando a introdução de Júlio César, o grande responsável pelo Fado ter voltado à Linha, neste projecto…”
Com esta gravação aqui apresentada, se fecha, neste capítulo, a resumida evocação deste artista impar da Parede.
O contributo que seu filho Nuno se prontificou prestar, transmite-nos um maior sentimento de perda.
Como escreveu o Dr. Mário Assis Ferreira, Director do Casino Estoril: “Partiu, deixou-nos mais pobres; de fado e também de afectos. Mais ricos, porém, de memórias resgatadas nessa homenagem que em cada ano devotadamente cumprimos, dedicando-lhe a «Grande Gala do Fado – Carlos Zel», nesta Casa que foi sua.. Sei que nessas Galas, ele sempre nos acompanha: ouço-o na voz de cada fadista, sinto-o presente na saudade da sua ausência. Que este CD,
gravado nas memoráveis sessões das suas “Quartas-Feiras do Fado”, nos inspire no destino de jamais o poder esquecer.
Porque o Fado não se esquece e Carlos Zel era o Fado!”

“Quando fiz os meus 40 anos de fado, numa festa no Tivoli, convidei o Carlos Zell par fazer a ligação entre a geração do meu filho Zé e a minha.
Não sei se foi a primeira vez, mas cantámos o Mouraria a meias.
Dai por diante, sempre que nos encontrávamos, fazíamos a mesma graça.
- Em que tom? Perguntava eu.
- No que tu quiseres.
Ambos cantávamos o Mouraria em qualquer tom, mas havia sempre esta boa educação.
Um dia o Carlos partiu. Enquanto vogava, ia trauteando o Mouraria. Tenho a certeza que era o fado
que ele mais gostava de cantar!
De repente…estava às portas do Céu. - Não se perde nada em bater, pensou ele.
O anjo que o recebeu já por cá tinha andado. - Então Carlos, entra, já estávamos à tua espera.
E enquanto falavam dos fadistas antigos (se já tinham chegado ou não), começou a formar-se uma
enorme orquestra de anjos com guitarras celestes.
O Carlos não cabia em si de espanto! - É que o Senhor quer ouvir-te cantar.
E como não era de se fazer rogado começou: - Explicou-me um velho amigo como o fado…………………..
Coisa estranha. Estava a cantar mas não conseguia ouvir a sua voz.
E então começou a aperceber-se que algo de estranho se estava a passar: o humano estava a
desvanecer-se e os anjos…cantam de outra maneira.”
por Vicente da Câmara
Ser fadista puro e simples como Alfredo Marceneiro, Fernando Maurício, Júlio Peres, João Ferro-Velho, Júlio Vieitas, Manuel de Almeida e tantos outros da velha guarda, só tem um fim – o de morrerem pobres.
E nem todos têm vocação masoquista. Era o ano de 1964, acabara eu de regressar de uma alargada comissão militar em Angola e as casas de fado vadio faziam parte da vida nocturna da zona de Cascais. Um período longo de férias estivais permitia-me frequentar esses retiros, muito para além dos fins-de-semana.
Tivesse esta mais de sete dias e lá estaria eu todas as noites sentindo o gemer das guitarras, no dedilhar virtuoso dos artistas que escutei – Carlos Gonçalves, Amadeu Ramin, Zeferino Ferreira, Zé Inácio, Castro Mota, João Maria Torre do Vale (Zina), José Carlos da Maia, Acácio Rocha, Manuel Dias, Martinho d’Assunção, José Pracana, Pedro Lafões, Fernando Pinto Coelho, de entre tantos outros, e decorando letras e musicas de fadistas como João Braga, Francisco Stoffel, António Reis, João Ferreira Rosa, Teresa Tarouca, Carlos Zel, António Melo Correia, Mercês da Cunha Rego, Teresa Siqueira, Carlos Braga, Carlos Guedes de Amorim, Miguel Sanches, Maria João Quadros, amadores em início de carreira, ou escutando gente já profissionalizada que acabava a noite nos retiros vadios, após fechadas as casas onde ganhavam o seu dia-a-dia, como Manuel de Almeida, Ada de Castro, Alfredo Marceneiro, Manuel Fernandes, João Ferro-Velho, Júlio Peres e quem mais aparecesse pagando para cantar.
Foi assim no Galito do Estoril, no Arreda, no Cartola, no Tabuinhas, no Estribo e um pouco mais tarde no Talassa do Carlos Zel, no Clube Amália da Quinta da Bicuda, no Picadeiro, ou no Clube D. Carlos da Quinta da Marinha, locais de Cascais de outros tempos.
Depois, nos anos 70 e 80, outros saltos, outros cenários, outra idade, já possuído de algum reportório e maior segurança de voz, com garantia de não esquecer as letras a meio do canto, lá me aventurei a “mostrar os dotes” em Lisboa, no Fux da rua da Horta Seca, ao Camões, no Nove e Tal da freguesia de Santa Isabel, no São Caetano da Lapa, no Velho Páteo de Santana, no Sr. Vinho da Lapa, na Tia Ló em Alfama, no Número Um da rua Francisco Manuel de Melo e algures em Caxias, em Santarém, em Coruche ou ainda nas margens do Douro, em Resende.

O “artista” ainda sou eu, José Pires de Lima(autor dos 2 livros ” Parede a terra e a sua gente”), numa noite de fados nas margens do Douro, na vila de Resende
Acompanhado pelos maiores guitarristas portugueses, cantar o fado parece mais fácil, e quem anda nestas lides entende quanto é importante ter a seu lado exímios tocadores.
Cito alguns, que são a razão da vaidade em dar público testemunho desta minha faceta vadia: Raúl Nery, António Chainho, José Pracana, Zeferino Ferreira, Manuel dos Santos, Sebastião Pinto Varela, Carlos Gonçalves, João Maria Torre do Vale, Arménio de Melo, Luís Moreira, Francisco Carvalho (Carvalhinho), Adelino Santos, António Parreira, Paulo Parreira, Pedro Veiga, Paulo Valentim, Fernando Silva (Fanam), Pedro Caldeira Cabral, Jorge Silva, Mário Pacheco, Alcino Frazão, António Luís Gomes, Luís Ribeiro, José Luís Nobre Costa, e outros que na guitarra portuguesa dispensam apresentação e ainda tantos mais como intérpretes de viola: Júlio Gomes, Orlando Silva, Miguel Ramos, Segismundo de Bragança, Fernando Alvim, Francisco Peres Andion (Paquito), João Mário Veiga, José Inácio, Castro Mota, José Carlos da Maia, Francisco Gonçalves, Raúl Silva, José Maria Nóbrega, Amadeu Ramin, Miguel Costa e Vasco Jardim estes e muitos outros que ao correr da pena me escapam os nomes.

Deixei de ser envergonhado, ganhei segurança, decorei algumas dezenas de letras, alcancei um estilo que tentei ser só meu, embora ao jeito de inspiradores como Alfredo Marceneiro e Manuel de Almeida, que só fica bem tentar imitá-los e, sem deixar atrapalhados os guitarras e os violas, consegui alguns adeptos. Nenhum me lançou, por caridade ou pena, qualquer moeda para o boné deixado no chão, e confesso, orgulhosamente, que não foram poucas as noites de aplauso que me ficaram no ouvido.
Nenhum “apoderado” se abeirou de mim convidando-me a uma carreira e ao lançamento de um disco gravado em estúdio, programando de seguida uma época pelas feiras e mercados do país, o que certamente me cerceou rente a possibilidade de uma carreira, embora uma noite, no Fux da rua da Horta Seca, uma equipa do Rádio Clube Português, chefiada pelo António Costa Macedo, me apanhasse em dois fados que esta Estação teve a amabilidade de retransmitir, num programa bem castiço denominado Rádio Rural.
Foi tudo quanto a uma “carreira” onde para cantar sempre paguei, fossem jantares ou uma bebida tomada pela noite dentro.
O meu Fado foi passagem cheia de lembranças, de motivos de orgulho e de momentos de vaidade que ainda hoje recordo, honrado por ter sido acompanhado por alguns dos maiores artistas da guitarra portuguesa e da viola, e de ter passado noites inteiras cantando com alguns dos intérpretes mais brilhantes desta canção.
Porque em páginas anteriores a figura e a carreira de Carlos Zel é apresentada com algum detalhe, trazendo para o presente a memória desse expoente de primeira grandeza do fado, apesar da minha fraca evidência no meio, guardo como boa recordação a noite em que nos anos 60, no restaurante Tabuinhas em Cascais, eu e o Carlos fizemos um dueto cantando o Leilão da Mariquinhas, uma criação de Alfredo Marceneiro, com música do Fado Mouraria.
Posso assegurar que ninguém nos assobiou.
dos livros ” Parede a terra e a sua gente”
autor – José Pires de Lima


